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A proteção de dados é importante em tempos eleitorais?

urna eletrônica

por Mario Filipe Cavalcanti de Souza Santos*

Proteção de dados e consumo

A vigência da LGPD trouxe à ordem do dia a preocupação com a matéria dos dados e os direitos correlatos de respeito à privacidade e ao consumidor. Todavia, como temos dito[1], essa preocupação dos atores do mercado não deveria ser nova, uma vez que os direitos de proteção de dados e da privacidade não foram inaugurados pela LGPD, mas apenas reunidos de forma a emprestar-lhe a ênfase que os novos tempos de inserção digital reclamam.

Isso porque, a Constituição do Brasil, o Código de Defesa do Consumidor e legislações federais que estipularam o dever de proteção de dados, como a Lei do Cadastro Positivo e o Marco Civil da Internet, já expuseram tal dever de tratamento adequado dos dados, muitos anos antes da LGPD ser promulgada e de vigorar formalmente.

Um caso emblemático que demonstra o acerto do quanto exposto é o processo judicial nº. 1080233-94.2019.8.26.0100 (TJSP), caso Vilela Coelho vs. Cyrela, que demonstra plenamente que o prestador de serviço, responsável pelo tratamento de dados do consumidor, é sim responsável pela lisura desse tratamento e responde diante do consumidor em caso de violação perpetrada mediante tratamento inadequado desses dados, inclusive com fundamento nos normativos das legislações acima referenciadas, que a LGPD apenas aglutinou.

Proteção de dados e eleições

Um outro aspecto de grande importância na matéria de proteção de dados e de respeito à privacidade é o tratamento de dados para fins políticos e eleitorais. Embora atualmente esse debate não esteja tão aquecido quanto o debate da proteção de dados no âmbito do consumo, é importante lembrar que as reflexões sobre a proteção de dados somente vieram à tona com maior força após escândalos de violação de dados para fins políticos.

Isso porque, como já é por muitos sabido, o escândalo Facebook-Cambridge Analytica, divulgado amplamente em 2018[2], trouxe à tona o fato de que a rede social Facebook permitia o acesso de inúmeros dados de seus usuários a desenvolvedores de aplicativos, que os desviaram para fins não informados aos consumidores, e que permitiram o uso das informações das pessoas contra elas mesmas, em atos de manipulações de comportamentos por meio de algoritmos e de robôs[3] que resultaram na ascensão de políticos radicais e outsiders como Donald Trump[4].

O que parece uma história de ficção científica, na verdade não é. Os nossos dados são informações que escancaram quem somos, por meio de nossas interações nas redes e em todo o âmbito das mídias digitais, de modo que escândalos como o do Facebook-Cambridge Analytica nos mostram que a violação de dados tem sido uma prática de muitas mídias digitais nos últimos vinte anos.

Em outros países do mundo essa realidade não é tão diferente. Na Índia, por exemplo, país mais populoso do mundo, as pessoas de baixo poder aquisitivo não possuem outro acesso à internet que não seja por meio do Facebook e suas redes sociais e o governo utiliza tais redes para disseminar ódio e fake news, com o objetivo de impedir a alternância democrática[5]. No nosso caso, já é sabido, por exemplo, que a rede social do Facebook, WhatsApp, teve um papel fundamental na eleição de 2018, e que várias empresas vendiam dados de milhares de consumidores (como número de fone/WhatsApp, endereço, estimativas de renda, etc.), aos políticos para o uso de microtargeting, ou seja, para o encaminhamento de publicidade política direcionada[6].

Ora, a mesma matéria que se aplica às relações de consumo, se aplica também às eleições, tendo em vista que os dados dos cidadãos só podem ser utilizados com a permissão deles e para uma finalidade expressamente cientificada a eles.

Por exemplo, se uma empresa consegue os dados de um consumidor X por meio de uma compra realizada e do preenchimento dessas informações em fichas de cadastro, fica claro que os dados foram colhidos para que a empresa os utilize para a cobrança, por exemplo, ou para identificar o consumidor que adquiriu o produto, não podendo o empresário repassar, vender, doar, ceder, nem permitir o acesso a esses dados por terceiros, para finalidades outras que não sejam aquelas originalmente acertadas. Isso significa dizer que um supermercado, por exemplo, não pode repassar estimativas de nossa renda – o que eles possuem sempre que informamos nosso CPF na compra de produtos –, para que políticos saibam que propagandas nos mandar a partir da nossa renda e posição social.

Quando suspeitar do uso indevido?

Enquanto cidadãos e consumidores precisamos estar atentos a simples fenômenos da vida cotidiana que podem nos ajudar a compreender melhor quando nossos dados estão sendo violados.

Note-se que não podemos receber mensagens de campanhas eleitorais em nossas casas, celulares e e-mails, se não tivermos sido previamente informados disso.

Por uma nova perspectiva civilizatória

O que tudo isso tem nos ensinado? Nenhum direito é respeitado quando não existe resistência e imposição de seus titulares, o que significa dizer que precisamos colaborar enquanto sociedade por uma nova perspectiva civilizatória onde o avanço das interações digitais e do mercado, por exemplo, não se dê por intermédio da morte da privacidade e dos direitos dos cidadãos.

 

* Mario Filipe Cavalcanti de Souza Santos é advogado atuante em Propriedade Intelectual, Privacidade e Proteção de Dados, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de São Paulo (USP), sócio do escritório VilelaCoelho Advogados (vcpi.com.br), Escritor, Prêmio Pernambuco de Literatura. Atende em [email protected]

 

Referências

[1] CAVALCANTI, Mario Filipe. LGPDP: o início da vigência do que já vigia. Revista Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-02/mario-cavalcanti-lgpdp-inicio-vigencia-vigia

[2] Para mais informações sobre esse caso recomendamos: The Guardian. The Cambridge Analytica Files. Disponível em: https://www.theguardian.com/news/series/cambridge-analytica-files

[3] KAISER, Brittany. Manipulados. Como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2020.

[4] Sobre Trump figurar desde o início como “indesejado” pelos insiders da política norte-americana, ver: LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018,

[5] MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio. Notas de uma repórter sobre Fake News e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

[6] Idem, ib idem.