*Por Débora Feliciano Savino
Vimos na publicação anterior da nossa série como ocorre o desenvolvimento de fármacos para o tratamento de uma doença completamente nova, causada por um agente infeccioso até então desconhecido, por meio do reposicionamento. Mas além do tratamento de pessoas doentes, é necessário que se estabeleça uma forma de prevenção, que pode se dar de duas formas no caso do novo coronavírus: o distanciamento social e o desenvolvimento de uma vacina.
O distanciamento social é uma prática de saúde pública aplicada com o intuito de prevenir que pessoas doentes entrem em contato com pessoas saudáveis e, assim, transmitam a doença. Essa prática pode incluir medidas em larga escala, como o fechamento de espaços públicos e cancelamento de quaisquer eventos que levariam a aglomeração de pessoas, assim como medidas individuais, como os cuidados com a higienização em casos de necessidade de exposição e a decisão de evitar multidões. Com tais medidas, a disseminação do vírus torna-se mais lenta, há diminuição da quantidade de pessoas doentes (o que é chamado de “achatamento da curva”) e, assim, evita-se o colapso do sistema de saúde público e privado.[1] O sucesso desta iniciativa pode ser visto, por exemplo, na Nova Zelândia, onde regras de distanciamento e isolamento social severas foram aplicadas antes que fosse notificado o primeiro óbito no país em decorrência da doença. Tais medidas fizeram com que a Nova Zelândia ocupasse o posto de primeiro lugar do mundo a voltar à normalidade pré-pandemia, 75 dias depois do início das restrições.[2]
Apesar de o distanciamento ter resultados benéficos em locais onde for aplicado da forma correta, a principal forma de evitar a disseminação do vírus é por meio da imunização da população, processo que ocorre quando há contato com o agente causador da doença de duas formas distintas: a produção de anticorpos de pacientes que entraram em contato com o agente causador da doença ou a vacinação.
Assim como é para fármacos, o processo de desenvolvimento de vacinas é longo e trabalhoso, sendo necessário estudar e compreender as bases moleculares da patogenicidade do agente microbiano, além da análise da resposta do hospedeiro e a segurança da vacina, o que pode demorar meses ou anos. O sequenciamento genético do novo coronavírus, publicado no começo de 2020, fez com que a corrida por uma vacina eficaz contra este vírus tivesse início, sendo necessários novos paradigmas para que esse desenvolvimento fosse acelerado. Com tais medidas, o primeiro candidato a vacina para Covid-19 entrou na fase de testes clínicos em humanos dois meses após a divulgação do sequenciamento genético do vírus, em 16 de março de 2020, sendo tal desenvolvimento creditado à empresa americana Moderna.[3]
Junto com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e autoridades globais de saúde, a Coalização para Inovações em Preparação para Epidemias, mantém uma base de dados atualizada a respeito do panorama de desenvolvimento de vacinas para a Covid-19, incluindo programas de desenvolvimento de vacinas reportados à OMS. Até abril, existiam 115 candidatos à vacina, sendo que 78 já possuíam confirmação de eficácia, e 37 ainda estavam em um status de desenvolvimento que não permitia tal avaliação.[4] Este cenário mostra como é importante que se estabeleça uma metodologia de monitoramento das tecnologias que estão sendo desenvolvidas e as suas formas de proteção no âmbito da propriedade industrial, o que torna um documento de patente uma importante fonte de informação tecnológica e um bom termômetro de mercado.
Nesse sentido, no Brasil, pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo extrapolaram um modelo de imunização contra Hepatite B em camundongos no desenvolvimento de uma vacina por spray nasal contra o novo coronavírus. Assim, desenvolveu-se uma nanopartícula de substância natural, onde é colocada uma proteína do vírus. A nanopartícula desenvolvida possui a propriedade de aderir ao tecido das mucosas nasais, fazendo com que permaneça nele por um período de 3 a 4 horas, até ser absorvido e, assim gerar a resposta imunológica. Os pesquisadores envolvidos tem a perspectiva de que os protótipos da vacina estejam prontos para testes em animais em cerca de 3 meses, sendo que o projeto conta com a participação, ainda, do Instituto de Ciências Biomédicas e do Instituto de Química da USP, além da pesquisadores da Plataforma Pasteur-USP, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e uma startup.
Observando a parceria entre duas das maiores universidades do país, não podemos deixar de notar que a corrida por uma vacina eficaz contra o novo coronavirus se dá em um cenário em que esta prática é recorrente, uma vez que essa prática acelera o desenvolvimento da terapia preventiva na medida em que há compartilhamento de conhecimentos, know-how, equipamentos etc.
A exemplo disso, no Brasil, houve a parceria entre o Instituto Butantan e a farmacêutica chinesa Sinovac, que prevê uma vacina (CoronaVac) até junho de 2021.[5] Exemplos a nível mundial incluem a parceria entre a Universidade de Oxford, na Inglaterra, e a farmacêutica inglesa AstraZeneca, até então tida como uma das vacinas mais promissoras para a prevenção da doença. [6]
Podemos notar que nos três exemplos aqui citados, a parceria decorre da atuação de mais de um centro de pesquisa, ou da junção de um centro de pesquisa e uma indústria. Os centros de pesquisas e as universidades são importantes aliados na inovação porque, além de capacitarem tecnicamente os profissionais para o mercado de trabalho, são notoriamente berço de novas tecnologias. Em contrapartida, ao aliarem-se às indústrias, as universidades, aproximam-se da possibilidade de ver a materialização das pesquisas em um produto ou processo inovador, que pode beneficiar a sociedade.
Vale lembrar que o tema das parcerias entre as Universidades e a Indústria Farmacêutica foi tema de um interessante webinar realizado em parceria com o Laboratório de Desenvolvimento e Inovação Farmacotécnica (DEINFAR-USP), no qual o coordenador do laboratório, o Prof. Dr. Humberto Gomes Ferraz, inventor do Vonau Flash, contou sua experiência no desenvolvimento e licenciamento da tecnologia do medicamento para a farmacêutica Biolab, e o sócio-diretor do escritório VilelaCoelho Propriedade Intelectual abordou os aspectos jurídicos das patentes na área farmacêutica.
Dentro do contexto da PI, as parcerias além de acelerarem o processo inovativo, podem gerar os mais diversos frutos: desde patentes em co-titularidade até contratos de transferência de tecnologia e licenciamentos, por exemplo no caso de o titular da patente não possuir capacidade produtiva ou de comercialização do produto coberto por ela. No caso da vacina produzida pela Oxford e a AstraZeneca, estuda-se a transferência total da tecnologia de produção da vacina para a FIOCRUZ.[7]
Como vimos, a Lei da Propriedade Industrial (Lei No. 9279 de 14 de Maio de 1996) impede que métodos de tratamento sejam patenteados, mas uma vacina pode ser protegida de diversas formas diferentes, como seu método de produção ou sua composição, desde que atendidos os requisitos legais para que a proteção seja concedida. No exemplo citado da vacina em spray, a nanopartícula, caso também atenda aos requisitos necessários, poderia ser patenteada.
Na nossa próxima publicação da série, veremos como as indústrias mecânicas direcionaram suas plantas para a produção e manutenção de respiradores, além das iniciativas para o desenvolvimento de respiradores mais baratos que visam suprir a demanda destes equipamentos dentro dos hospitais.
Referências
[1] Covid-19 information and resources for Johns Hopkins University. Disponível em <https://splg.org/wp-content/uploads/2020/03/what-is-social-distancing-and-how-can-it-slow-the-spread-of-COVID-19-johns-hopkins.pdf> Acesso em 09/06/2020.
[2] Nova Zelândia consegue erradicar coronavírus e suspende restrições. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/mundo/nova-zelandia-consegue-erradicar-coronavirus-e-suspende-restricoes/> Acesso em 09/06/2020.
[3] Disponível em: <https://www.modernatx.com/modernas-work-potential-vaccine-against-covid-19> Acesso em 09/06/2020.
[4] Le, T. T., et al. The COVID-19 vaccine development landscape. Nature Reviews Drug Discovery, v. 19, p. 305-306, 2020.
[5] Butantan e Governo de SP vão testar e produzir vacina inédita contra coronavírus. Disponível em < http://www.butantan.gov.br/noticias/butantan-e-governo-de-sp-vao-testar-e-produzir-vacina-inedita-contra-coronavirus> Acesso em 07/07/2020.
[6] Universidade de Oxford e AstraZeneca firmam acordo para acelerar a produção de vacina contra Covid-19. Disponível em < https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/04/30/universidade-de-oxford-e-astrazeneca-firmam-acordo-para-acelerar-producao-de-vacina-contra-covid-19.ghtml> Acesso em 07/07/2020.
[7] AstraZeneca e Oxford estudam a transferência total da tecnologia da produção da vacina à FIOCRUZ. Disponível em < https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,astrazeneca-e-oxford-estudam-a-transferencia-total-da-tecnologia-da-producao-de-vacina-a-fiocruz,70003348739>. Acesso em 07/07/2020