* por Scarlete C. Palma (advogada)
O surgimento da tecnologia, e a sua consequente evolução, são considerados eventos de demasiada importância para a história da humanidade: contribuinte decisivo para marcos como a Revolução Industrial de 1789 e a Guerra Fria travada entre os Estados Unidos da América (EUA) e a extinta União Soviética, dentre tantas outras notáveis passagens, além de ser considerada como marco per se, a tecnologia tem causado relevantes impactos mundiais em todos os setores da sociedade desde o seu advento.
A aclamada “Era da Informação” apresenta-se como um caminho irreversível, trazendo em si uma necessidade de adaptação e transformação constante no olhar e no viver de todos os seres humanos, pois o questionamento que surge não é mais sobre quando, mas de que forma se ajustar às demandas dessa revolução que rompeu os modelos tradicionais e transcendeu o ambiente físico.
E dentre as diversas ramificações da tecnologia, todas em permanente estudo e progresso, a criação da internet é caracterizada como uma das mais importantes para o avanço da informação e pode ser brevemente conceituada como o “sistema global de redes de computadores interligados que utilizam um conjunto próprio de protocolos” que conecta diversos usuários ao redor do globo. De modo superficial, significa dizer que uma informação é propagada de um ponto para o outro em uma questão de milissegundos, e os conteúdos, anteriormente restringidos a um grupo e/ou região, passam a estar ao acesso de (quase) todos e serem compartilhados de forma (quase) universal.
No Brasil, a regulamentação sobre a internet se dá através da Lei sob o nº 12.965/2014, também conhecida como “Marco Civil da Internet”, norma que disciplina o uso da internet no país por meio da previsão de princípios, garantias, direitos e deveres para quem faz uso da rede, bem como da determinação de diretrizes para a atuação do Estado.
Adjacentemente à criação da internet, o fenômeno tecnológico denominado “Inteligência Artificial”, ou simplesmente IA, se desenvolvia a passos largos. Com um histórico que possivelmente remonta à Antiguidade, o objetivo de desenvolvimento de máquinas que aprendessem e pensassem como os seres humanos sempre esteve presente, no entanto, o termo e a respectiva ciência de estudo como conhecidos nos dias atuais somente foram apresentados e oficialmente fundados no ano de 1956, em um workshop realizado na Universidade de Dartmouth, em New Hampshire, EUA, pelos pesquisadores John McCarthy, Marvin Minsky, Nathaniel Rochester e Claude Shannon.
Todavia, diversas mudanças foram necessárias e as pesquisas adotaram novos rumos no decorrer das décadas, sendo o ano de 2010 considerado como o renascimento da IA, com 2 fatores que influenciaram decisivamente em sua ascensão e resultaram em aplicações de sucesso em diversos setores: exploração de volumes massivos de dados (big data) através das técnicas de aprendizagem profunda (deep learning), e grandes avanços na capacidade de processamento dos computadores.
Se em séculos passados o ouro era considerado o bem mais valioso e desejado, atualmente pode-se afirmar que são os dados que ocupam dita posição.
No que compete ao panorama legislativo, ainda não existem regulações sobre IA em outros Estados – há, no entanto, diretrizes e projetos em andamento, como o “Artificial Intelligence Act” na União Europeia, e o “Pan-Canadian Artificial Intelligence Strategy” no Canadá – em que pese o tema esteja ocupando cada vez mais espaço nos cenários acadêmico, científico e político de todos os países.
Em acompanhamento as tendências regulatórias mundiais e em impressionante iniciativa, o Congresso Nacional brasileiro promoveu processo legislativo com o fito de regular o desenvolvimento e aplicação dos sistemas de inteligência artificial em território brasileiro, através do Projeto de Lei (PL) sob o n.º 21/20. Atualmente em tramitação no Senado Federal, a versão final do PL basicamente se estrutura em 10 artigos com a definição do escopo da lei, a conceituação legal de IA, os objetivos, os princípios, as diretrizes e as competências do Estado sobre o tema.
Adiciona-se o ramo da Propriedade Intelectual ao assunto e conclui-se que, no cenário nacional, a interseção e os impactos da IA são comumente suscitados com relação às patentes e, mais recentemente em vista do PL n.º 21/20, com relação aos direitos autorais. Porém, o presente artigo presta-se a elucidar sobre um dos possíveis impactos do uso da IA com relação às marcas de forma reflexiva, mais precisamente sobre o grau de escolha do consumidor quando da seleção de uma marca e respectivos produtos e serviços.
A definição de marca nas palavras do jurista Denis Borges Barbosa é o “sinal visualmente representado, que é configurado para o fim específico de distinguir a origem dos produtos e serviços. Símbolo voltado a um fim, sua existência fática depende da presença destes dois requisitos: capacidade de simbolizar, e capacidade de indicar uma origem específica, sem confundir o destinatário do processo de comunicação em que se insere: o consumidor. Sua proteção jurídica depende de um fator a mais: a apropriabilidade, ou seja, a possibilidade de se tornar um símbolo exclusivo, ou legalmente unívoco, em face do objeto simbolizado”.
Mais do que isso, a marca simboliza a possibilidade de livre escolha do consumidor com relação aos produtos e serviços disponíveis no mercado, com motivos inerentes de quem os seleciona: seja por ser marca derivada de empresa que lhe transmite confiabilidade, possuir uma embalagem criativa, um preço ou desconto atrativo, uma indicação de um conhecido ou influencer, dentre tantos outros. E essa escolha por uma marca e a diferenciação entre um produto/serviço e outro do mesmo segmento são inteiramente baseadas na percepção humana e em suas interações, pelo menos até o momento.
Diz-se “até o momento” pois tem se notado uma predisposição da IA substituir o lugar do “consumidor médio” em sua integralidade, tanto na escolha de marcas baseadas em compras anteriores realizadas pelo próprio usuário e de suas preferências coletadas através de seus dados, quanto na comparação entre uma marca e outra – o atual modelo de shopping-then-shipping (compra de um produto pelo consumidor e posterior entrega deste) se transformará em shipping-then-shopping (envio de produto baseado em indicação da IA e posterior decisão de compra pelo consumidor), diminuindo o grau de participação e de poder de decisão do consumidor substancialmente, e consequentemente, a sua interação com as marcas.
Tradicionalmente, o consumidor decide por uma compra com base em milhares de marcas à disposição. Por sua vez, as ferramentas de IA apresentarão somente um número limitado de marcas daquela categoria, especialmente no que diz respeito aos smart devices, por exemplo: a geladeira inteligente pode detectar que algum produto de consumo contínuo está quase no fim, como manteiga ou leite, e entregá-lo em sua casa antes mesmo de se considerar uma ida ao supermercado.
Os desdobramentos advindos desse marketing personalizado levantam diversos questionamentos: quais seriam essas marcas “limitadas” à disposição? Haveria uma violação ao direito concorrencial e prejuízo às empresas? Haveria uma violação ao direito do consumidor e prejuízo aos consumidores? Seria possível prever todas as decisões de compra do consumidor? Há violação à privacidade?
Apesar de tratar-se de tema recente e pouquíssimo explorado pelos estudiosos tanto em nível nacional quanto internacional, já é possível identificar divergência de opiniões dentre os poucos que se aventuram no assunto: alguns compreendem que o papel da IA, tanto na escolha de produtos e serviços de determinadas marcas, quanto na análise e decisão sobre a violação entre marcas semelhantes, será superior ao trabalho executado pelos seres humanos, como defende o líder de produto e estrategista estadunidense Charles Hill ao enfatizar que “humanos procurando por semelhanças em marcas registradas é um trabalho terrível, ineficiente e propenso a erros, e um trabalho que os computadores podem fazer muito melhor do que as pessoas”, de forma que transformará o conceito do direito marcário como interpretado e aplicado nos dias atuais.
Por sua vez, há aqueles que entendam a importância e os desafios representados pela IA, mas que consideram os fundamentos do direito marcário suficientemente fortes para não serem facilmente abalados.
De fato, o destaque e a posição galgada pela IA nos últimos anos têm sido inquestionáveis e sem precedentes, de modo que a Propriedade Intelectual, assim como todos os setores, independentemente da área, deva reconhecer os seus impactos, adaptando-se e talvez não mais aplicando conceitos e princípios convencionais que não mais se encaixarão com a realidade de um mercado conduzido majoritariamente por programas de IA.
REFERÊNCIAS:
BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 803.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 21, de 2020. Estabelece fundamentos, princípios e diretrizes para o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil; e dá outras providências.
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