*Por Débora Savino.
A publicação da estrutura em dupla-hélice do DNA, descoberta por Watson e Crick em meados dos anos 50, posteriormente confirmada por diversos experimentos, além de creditar à dupla o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1963, permitiu que hipóteses, como a existência de um possível mecanismo de duplicação, fossem confirmadas.
A curiosidade a respeito do material genético não foi completamente preenchida a partir dos achados de Watson e Crick, que apenas permitiram que outras hipóteses fossem formuladas e guiaram diversos outros projetos, como o Projeto Genoma Humano, nos anos 90, que também contou com a participação de Watson. O projeto, além de permitir o sequenciamento do material genético de humanos, tinha como objetivo o sequenciamento do genoma de “organismos modelos”, como camundongos, bactérias, fungos, entre outros, que auxiliaram na compreensão do sequenciamento do genoma humano. Entre outros achados, o projeto permitiu que se identificasse mais de 40% de semelhança entre as proteínas humanas e de vermes e a identificação de sequências específicas associadas a doenças como o câncer de mama, doenças musculares e surdez.
O mais recente avanço das pesquisas envolvendo o material genético, alcançado por outra dupla, dessa vez composta por duas mulheres, rendeu o Prêmio Nobel de Química de 2020 pelo desenvolvimento do sistema CRISPR-Cas. Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna desenvolveram o sistema em 2012 e agora fazem parte dos 4% de mulheres laureadas, sendo as primeiras mulheres premiadas na categoria sem a presença de um homem na equipe.
O sistema CRISPR (sigla em inglês para Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats ou Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas) faz parte do sistema imune adaptativo de bactérias e arqueas que permite que a imunidade seja adquirida por integrar, ao DNA do hospedeiro, pequenos fragmentos do material genético do organismo invasor, permitindo que o hospedeiro passe a processar, como parte integrante do seu próprio material genético, as informações contidas no fragmento incorporado.
Utilizando esse tipo de técnica, que tem sido chamada de “tesoura genética”, é possível retirar um fragmento do material genético e modular a produção de proteínas em células animais, vegetais e de outros microrganismos, compreendendo uma ferramenta precisa, e estratégica, no desenvolvimento de terapias para doenças de base genética, como o câncer.
Mas a láurea acontece enquanto, nos bastidores, uma longa batalha pelos direitos de propriedade intelectual do sistema, chama a atenção por envolver grandes institutos de pesquisa. Charpentier e Doudna, junto com Martin Jinek (Universidade da Califórnia) e Krzystof Chylinski (da Universidade de Viena), depositaram, em maio de 2012, o primeiro pedido de patente a respeito do sistema CRISPR-Cas9, que previa a edição genética em células animais (incluindo humanos), vegetais e de bactérias. Poucos meses depois, em junho do mesmo ano, as pesquisadoras publicaram na revista Science os detalhes sobre o sistema. Até dezembro de 2012, outros grupos de pesquisa publicaram o uso do sistema CRISPR-Cas para edição genética de células humanas e animais, e em dezembro, o Instituto Broad, uma colaboração da Universidade de Harvard com o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) depositou uma patente com os resultados do trabalho desenvolvido por Feng Zhang em seu pós doutorado. O trabalho desenvolvido por Zeng prevê o uso do sistema na edição do genoma de células eucarióticas (ou seja, plantas e animais, incluindo humanas).
Após o depósito, o Instituto Broad entrou com um pedido de celeridade do exame do pedido de patente que foi concedido em 2014, antes do pedido depositado pela Universidade de Berkeley. Em resposta, a Universidade da Califórnia recorreu ao Conselho de Apelação e Julgamento de Patentes, uma divisão do USPTO, com a alegação de que a concessão da patente do Instituto Broad interfere na matéria reivindicada em seu primeiro pedido de patente. O resultado saiu em fevereiro de 2017 e a decisão do USPTO favoreceu o Instituto Broad, reconhecendo que a invenção é nova e inventiva e, dessa forma, não interfere na matéria reivindicada pela Universidade da Califórnia. Logo, a partir desse processo não foi possível chegar a conclusão a respeito de quem foi o pioneiro em utilizar a técnica em células vegetais e animais.
Ao longo dos anos, a Universidade da Califórnia viu diversos dos seus pedidos de patente relacionados ao CRISPR serem concedidos, sendo o primeiro deles concedido pelo Escritório Europeu de Patentes (EPO), abrangendo mais de 35 países e prevendo o uso do sistema na edição genética de células animais (incluindo humanas) e vegetais. Após a decisão do USPTO, a Universidade ainda recorreu da decisão, levando o caso à esfera federal. A primeira patente depositada pela Universidade da California foi concedida apenas em 2018, mesmo ano em que a corte Americana chegou à mesma conclusão que o USPTO a respeito da patente do Instituto Broad.
Em 2019, o Conselho de Apelação e Julgamento de Patentes do USPTO começou, novamente, a analisar uma nova interferência entre 10 patentes concedidas da Universidade da Califórnia, que já neste ano era a detentora do maior portfólio de patentes do sistema, e patentes do Instituto Broad, que pode colocar em risco 13 das suas patentes concedidas e um pedido ainda em exame.
A batalha ainda não teve desfecho, mas a expectativa é de que essa nova etapa do processo responda a questão sobre quem, de fato, foi pioneiro em utilizar o sistema CRISPR. Os responsáveis pelo Nobel não se manifestaram sobre uma eventual interferência do veredito no prêmio.
Referências:
“Dupla hélice do DNA – Conheça a história da descoberta de Watson e Crick”. Disponível em https://educacao.uol.com.br/disciplinas/biologia/dupla-helice-do-dna-conheca-a-historia-da-descoberta-de-watson-e-crick.html. Acesso em 16/10/2020.
“O PROJETO GENOMA HUMANO”. Disponível em https://genoma.ib.usp.br/sites/default/files/projeto-genoma-humano.pdf. Acesso em 16/10/2020.
“Ferramenta para editar genes leva o Nobel de Química” – Revista FAPESP. Disponível em https://revistapesquisa.fapesp.br/ferramenta-para-editar-genes-leva-o-premio-de-quimica/. Acesso em 16/10/2020.
“Pioneers of revolutionary CRISPR gene editing win chemistry Nobel”. Disponível em https://www.nature.com/articles/d41586-020-02765-9. Acesso em 16/10/2020.
Wang, H.; La Russa, M.; Qi, L. S. “CRISPR/Cas9 in Genome Editing and Beyond”. Annual Review of Biochemistry, v. 85, p. 227-264, 2016.
Charpenties, E. Hille, F. “CRISPR-Cas: biology, mechanisms and relevance”. Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences, v.371, 12p, 2016.
Van der Oost, J.; Westra, E. R.; Jackson, R. N.; Wiedenheft, B. “Unravelling the structural and mechanistic basis of CRISPR–Cas systems”. Nature Reviews Microbiology, v. 12, p.479-492, 2014.
“Guerra de Patentes” – Revista FAPESP. Disponível em https://revistapesquisa.fapesp.br/guerra-de-patentes/. Acesso em 16/10/2020.
“CRISPR Timeline” – Universidade da Califórnia. Disponível em https://news.berkeley.edu/2019/06/25/crispr-timeline/. Acesso em 16/10/2020.
“Pivotal CRISPR patent battle won by Broad Institute”. Disponível em https://www.nature.com/articles/d41586-018-06656-y. Acesso em 16/10/2020.
“Patent office renews dispute over patent rights to CRISPR-Cas9” – Universidade da Califórnia. Disponível em https://news.berkeley.edu/2019/06/25/patent-office-renews-dispute-over-patent-rights-to-crispr-cas9/. Acesso em 16/10/2020.
“Another Round in the US CRISPR Patent Dispute”. Disponível em https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=812c4573-2996-4b8c-8be9-97b7fe704a14. Acesso em 16/10/2020.
“As patentes do Crispr”. Disponível em: https://www.ldsoft.com.br/blogs/as-patentes-do-crispr/. Acesso em 16/10/2020.