* por Débora Savino
“Do no harm” é um dos principais princípios da pesquisa científica na área da saúde. Desde os testes em animais, até os testes em humanos, uma série de princípios éticos e bioéticos devem ser seguidos para o desenvolvimento, por exemplo, de um novo tratamento para uma determinada doença. Quando este desenvolvimento se dá a partir de uma descoberta científica disruptiva, que mexe com assuntos tidos como tabus ou com o imaginário da sociedade, as discussões éticas costumam ser acaloradas.
Mas o que é bioética e ética em pesquisa?
São 4 os princípios fundamentais da bioética, que também pautam a ética em pesquisa: a autonomia, a não-maleficência, a beneficência e a justiça. Tanto a bioética quanto a ética em pesquisa, preconizam a dignidade humana, a autonomia e a ponderação dos riscos e prejuízos ao indivíduo e à sociedade. A ponderação dos riscos e malefícios é especialmente importante quando se trata de uma abordagem terapêutica por muitos entendida como um desafio às leis naturais ou religiosas.
“Código da vida”, o material genético (e aqui falamos especificamente do DNA), sempre causou espanto, admiração e respeito. Trata-se da molécula que carrega todas as informações genéticas de um organismo que tem a potencialidade de transferir essas informações, boas ou ruins, às próximas gerações. Os avanços da biologia molecular, engenharia genética e biotecnologia permitiram que muito do mistério por trás do DNA começasse a ser elucidado, possibilitando, inclusive, a manipulação e recombinação genética e a produção de novos organismos. A perspectiva de “criação de novos organismos” faz com que os mais afeitos à ficção científica imaginem a manipulação genética de seres humanos, criando pessoas completamente fabricadas para que apresentem características tidas como benéficas, ou não apresentem características prejudiciais. Mas será que essa possibilidade é, ainda, tão remota?
Consumimos organismos geneticamente modificados o tempo todo. A transgenia, um dos métodos mais estabelecidos de modificação, é constantemente aplicada no agronegócio para a produção de lavouras mais produtivas, mais resistentes ou com características sensoriais mais atrativas. No reino animal, a modificação genética pode ser aplicada para a produção de animais com maior massa ou para a produção de modelos de doenças humanas, assim, auxiliando nos estudos e no desenvolvimento de novas terapias para as doenças estudadas. As discussões éticas, aqui, se dão pelo benefício nulo aos animais, que só são modificados para satisfazer necessidades humanas, assim como a modificação de plantas e gêneros alimentícios, sem o conhecimento dos prejuízos a longo prazo que o consumo de transgênicos pode trazer.
E, então, surgiu o método de modificação genética usando o CRISPR-Cas9.
Há muito tempo conhecido por ser parte do mecanismo de defesa de bactérias contra bacteriófagos, o CRISPR-Cas9 (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats – Conjunto de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Interespaçadas associadas à enzima Cas9), popularmente chamado de “tesoura molecular”, permite a edição genética de forma tão precisa que muitos acreditam que o organismo gerado não é considerado um organismo geneticamente modificado. A possibilidade de aplicação em células humanas, sobretudo para o manejo de doenças de base genética, se dá pelo fato de ser um método altamente eficaz e preciso, com pouca ou nenhuma probabilidade de erro. Ou seja, nos vemos diante da possibilidade de alterar ativamente o genoma humano, o “código da vida”, para curar, tratar ou mesmo eliminar doenças tidas, até então, como desafios para a indústria farmacêutica e a medicina.
Por possibilitar a modificação de células germinativas ou embriões, acredita-se que o princípio da autonomia pode ser violado. Este debate foi especialmente acalorado quando, em 2018, foi noticiado o caso das gêmeas, filhas de pais chineses submetidos a tratamentos de fertilidade, que nasceram após a modificação das células germinativas para apresentarem a característica de resistência ao vírus HIV. Além de os métodos de prevenção e controle da AIDS serem amplamente estabelecidos e eficazes, as discussões a respeito da falta de ética do pesquisador responsável pela alteração também girou em torno da falta de ciência dos pais das crianças, que podem ter sido levados a apenas aceitar a modificação sem saber dos potenciais riscos (novamente ferindo o princípio da autonomia), e a falta de conhecimento – e daí por limites temporais da tecnologia – das consequências dessa modificação a longo prazo.
Isso porque o gene modificado por CRISPR-Cas9 neste caso é responsável, também, pela resistência a outros vírus. E isso acontece com a maioria dos genes conhecidos: eles não codificam apenas uma característica, e a sua remoção pode modificar a expressão de outros genes que, consequentemente, podem gerar malefícios a longo prazo. Vemos, aqui, a não-maleficência sendo, também, potencialmente violada. Por mais que as gêmeas tenham nascido com saúde e, aparentemente, sem mutações genéticas que resultem em doenças graves, e que o método permite, de fato, a execução de mudanças no genoma humano, é preciso assegurar o cumprimento dos princípios bioéticos.
A possibilidade de cura de doenças neurodegenerativas, AIDS e câncer traz esperança à sociedade, o que torna o assunto ainda mais sensível. Mas é inegável que há, ainda, muito o que se aprender sobre o “código da vida” e quais são as consequências a longo prazo da sua modificação.
Referências:
https://depts.washington.edu/bhdept/ethics-medicine/bioethics-topics/articles/principles-bioethics
http://conselho.saude.gov.br/comissoes-cns/conep/
https://www.embrapa.br/tema-transgenicos/sobre-o-tema
https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fmicb.2021.657981/full