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Astreintes e a possibilidade de cobrança em face da Fazenda Pública

Astreintes e a possibilidade de cobrança em face da Fazenda Pública 2

*Por Marcella Stampacchio Bassi (advogada)

 

A astreinte, palavra e instituto de origem francesa, foi incorporada à legislação brasileira no Código de Processo Civil, representando uma espécie de multa processual baseada na execução indireta, que possui como escopo coagir o devedor ao cumprimento da obrigação mediante a imposição de multa pecuniária, de forma a desencorajar o inadimplemento.

Conforme definiu Enrico Liebman, essa penalidade é traduzida na aplicação de multa diária que pode ser fixada na sentença ou no despacho de recebimento da inicial, portanto, é fixada por dia de atraso, conforme se vê:

A condenação pecuniária proferida em razão de tanto por dia de atraso (ou por qualquer unidade de tempo, conforme as circunstâncias), destinada a obter do devedor o cumprimento de obrigação de fazer pela ameaça de uma pena suscetível de aumentar indefinidamente.

E Marinoni complementa essa definição afirmando que:

Astreinte é multa, coerção indireta, implica ameaça destinada a convencer o réu a adimplir a ordem do juiz.

Fato é que esse instituto fortalece os princípios do Processo Civil, sendo mola propulsora para a celeridade processual e eficiência do Judiciário, já que garante um sistema com tutela executiva capaz de proporcionar satisfação quanto ao tempo e quanto ao direito merecedor desta tutela.

Contudo, nota-se que existem diversos juristas, dentre eles Vicente Greco Filho, que defendem a inaplicabilidade desse instituto em face da Fazenda Pública, sob o frágil argumento de que se penalizaria o erário e, por consequência, toda a sociedade que, indiretamente, arcaria com o ônus da determinação judicial, senão vejamos:

Entendemos serem inviáveis a cominação e a imposição de multa contra pessoa jurídica de direito público, os meios executivos contra a Fazenda Pública são outros. Contra esta a multa não tem nenhum efeito cominatório, porque não é o administrador renitente que irá pagá-la, mas os cofres públicos, ou seja, o povo.

Ora, com todo o respeito aos teóricos que defendem a argumentação de risco ao erário, esse raciocínio não merece prosperar: seja porque é dever da Administração Pública de processar o agente público responsável; seja porque essa inaplicabilidade ofenderia os princípios constitucionais da isonomia e da eficiência, tornando-se ato atentatório à dignidade da justiça. 

Soma-se a isso a jurisprudência dos Tribunais pátrios e do Superior Tribunal de Justiça que, acertadamente, aplicam as astreintes à Fazenda Pública, como se vê:

 

PROCESSUAL CIVIL. OFENSA AOS ARTS. 461 E 461-A DO CPC NÃO CONFIGURADA. FIXAÇÃO DE ASTREINTES CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE. 1. O STJ entende ser cabível a cominação de multa diária (astreintes) contra a Fazenda pública como meio executivo para cumprimento de obrigação de fazer ou entregar coisa (arts. 461 e 461-A do CPC), inclusive para obrigar autarquia federal a providenciar a escrituração de Títulos da Dívida Agrária (TDA) para o pagamento de indenização pactuada em decorrência de desapropriação, por interesse social, para fins de reforma agrária. 2. Recurso Especial não provido.

(STJ – REsp: 1664327 PB 2017/0070792-4, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/09/2017)

 

CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. FIXAÇÃO DAS ASTREINTES CONTRA A FAZENDA PÚBLICA POR NÃO CUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO. RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. DECISÃO UNÂNIME. 1. É lícito ao magistrado fixar astreintes contra a Fazenda Pública com o objetivo de assegurar o adimplemento da obrigação de fazer (convocação para apresentação de documentos e demais etapas do Concurso para Agente de Segurança Penitenciária), nos termos do acórdão de fls. 219. 2. Diante da desídia e porque a burocracia do sistema interno do Estado de Pernambuco não pode representar entrave ao cumprimento de DECISÃO JUDICIAL (fls.219), transitada em julgado em 12.04.2015 (fls. 229), foi proferida a decisão combatida, determinando o cumprimento da ordem, no prazo de 05 dias úteis, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00 (fls. 294), com remessa carga a PGE em 27.08.2018 (fls. 297). 3. O montante da astreinte há de ser bastante para demover a parte da ideia de desobediência e, equânime na retribuição do prejuízo causado em razão do descumprimento do provimento jurisdicional. 4. Patente o direito da parte autora aos valores concernentes às astreintes fixadas, haja vista a RECALCITRÂNCIA, sobretudo quando passados mais de 03 (três) anos do julgamento de mérito do mandamus (fls.219), que reconheceu a procedência do pedido autoral, sem o devido cumprimento por parte do Ente Público, o qual apenas ocorreu em 19.10.18 (fls. 380/381). 5. Não subsistindo nos autos qualquer razão para demover ou reduzir a medida coercitiva de cumprimento de ordem judicial, consubstanciada na forma da multa aplicada por descumprimento. 6. Recurso de agravo improvido, mantendo-se a decisão, a qual fixou a multa diária “em R$ 5.000,00, devendo, contudo, ser limitada ao valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), a fim de evitar enriquecimento ilícito, bem como ser observado, para tanto, o regime de precatório (art. 100, da CF/88)”. 6. Decisão unânime.

(TJ-PE – AGV: 3423501 PE, Relator: Itamar Pereira Da Silva Junior, Seção de Direito Público, Data de Publicação: 02/04/2019)

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO – DIREITO PROCESSUAL – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – OBSERVÂNCIA ÀS DETERMINAÇÕES CONSTANTES NO TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL – DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO – MATÉRIA PRECLUSA – NOVA DISCUSSÃO DA COISA JULGADA MATERIAL – IMPOSSIBILIDADE – FIXAÇÃO DE ASTREINTES CONTRA A FAZENDA PÚBLICA – DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL – DEVIDA – PRECEDENTES DO STJ – RECURSO NÃO PROVIDO – DECISÃO MANTIDA. – É defeso ao executado, em sede de impugnação ao cumprimento de sentença, voltar a discutir o que restou decidido no mérito da ação de conhecimento, haja vista que a matéria está acobertada pela coisa julgada – A coisa julgada material torna imutável e indiscutível o decisum – Nos termos da reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e deste Tribunal de Justiça, é lícito ao Magistrado a fixação de multa diária contra a Fazenda Pública, no intuito de se implementar o cumprimento da obrigação de fazer judicialmente estabelecida.

(TJ-MG – AI: 10105160370612002 Governador Valadares, Relator: Ana Paula Caixeta, Câmaras Cíveis / 4ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 12/03/2021)

 

Assim, nota-se com clareza que o propósito dos magistrados é no viés da proteção aos direitos e garantias fundamentais, traduzidos na igualdade e eficiência, já que não consideram plausível que a Administração Pública se furte do seu dever de cumprir as obrigações provenientes de decisões judiciais alegando dano ao erário.

 

Isto porque, é cristalino que o descumprimento pelo Estado das determinações do próprio Estado-juiz, geraria no jurisdicionado-administrado a ideia de impunidade e desobediência, corolário ao atentado à dignidade da Justiça e em muitos casos a violação e o permissivo de perecimento de direitos como, por exemplo, em situações que envolvessem planos de saúde, internação e até reintegração de funcionário. 

 

Portanto, argumentar pela inaplicabilidade desse instituto em face da Fazenda Pública, seria o que se não permitir a construção de um Estado iníquo, totalmente distante do Estado Democrático de Direito?

 

Como se demonstrou, as astreintes possuem duplo efeito, tanto educativo quanto punitivo, e são aplicadas em casos de descumprimento ou retardamento do cumprimento de uma ordem judicial. Logo, por sua natureza coercitiva, são entendidas como meio de promover a efetividade dos direitos e, exatamente por isso, devem ser aplicadas à Fazenda Pública, com a finalidade de priorizar os princípios Constitucionais, especificamente o da igualdade, previsto no art. 5º, “caput”, da Constituição Federal e o da eficiência administrativa, previsto no art. 37, “caput”, da Constituição Federal.

Nesse cenário, conclui-se que uma solução adequada para a controvérsia seria assegurar o direito da Fazenda Pública em ingressar com ação de regresso contra o agente público causador da mora e do pagamento das astreintes, de forma a reaver os prejuízos causados pela inércia dele. Essa ação de regresso teria por fundamento a improbidade administrativa e deveria ser ressaltada a questão da responsabilidade objetiva e subjetiva desses dois pólos: de um lado o Estado, que responderia objetivamente face o administrado e, de outro, o Agente Público, que responderia subjetivamente face ao Estado.